quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Musa inglória ( primeira versão )
Então ela sente que sua vida é como um conto que não passou da segunda linha, um sonho fabuloso repetidas vezes interrompido, uma religião falida. Metodicamente cumprindo seus deveres de mulher e mãe... Catastroficamente esposa e amiga. A rainha do lar eternamente escrava do seu oficio de ser santa e amante; vivendo sempre no limite, permanecendo ali por livre e espontânea vontade alheia.
Sentada a beira da cama, contemplado o seu homem e marido morrer, ela recorda dos seus sonhos de cinderela, de professora formada, de estrela do jazz. Lembrou-se também da tirania do pai, do matrimonio forçado, o marido extremamente bondoso e desinteressante, dos filhos exigentes e indesejados. Pensou com amargura em si mesma; na sua maldita alma pequena e fraca, fraquíssima!Apertou as unhas contra as mãos com um terrível ódio por nunca ter feito nada de substancial para se livrar daquelas amarras.
O marido murmura frases ilógicas, os filhos choram e ela mantém os olhos baixos (como fez a vida toda,metodicamente).Quantas e quantas vezes ,quando estavam todos reunidos em momentos felizes elas desejou que o marido e os filhos tivessem uma coisa qualquer,um mal súbito.Olhando os olhos fundos do marido ela planeja os prantos de viúva,os olhares languidos de mulher inconsolável.O gemido final aconteceu e ela jogou-se sobre o corpo dele,mas não era tristeza e sim agradecimento por enfim chegar o ápice da grande peça,o momento triunfal da atriz.
A musa inglória de tantos atos penosos, a infeliz e diabólica sob o vestido de outra. Nunca mais imutável, nunca mais infeliz; finalmente tem o poder da solidão em suas mãos,mas o que fazer com esse poder?O que afinal ela iria fazer com essa tal liberdade?
Assustou-se quando se encontrou só na casa,sem os filhos que nunca quis e sem o marido que nunca amou;não tinha mais contra quem praguejar!Desejou durante anos e agora ela percebe que o que a mantinha viva era a ‘possibilidade’ e não o ‘fato’.
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Latejante
Tarde sonolenta e quentíssima. Ingredientes perfeitos para um ostracismo dos sentimentos e tudo indicava que minha tarde seria de fato assim mesmo, mas sabem eu acredito em anjos; acredito que nesse nosso universo,nessa canoa repleta de remendos,exista sempre uma força maior,que uns chamam de Deus e eu apenas chamo de hoje de cosmos,que conspira contra ou a nosso favor( uma questão ângulo de visão).Dias,semanas até que eu tenho sentido muito pouco a pessoas e a mim mesmo e isso me deixa,como disse certa vez Clarice Lispector,morto,muitíssimo alias.As pessoas,todas,me pareciam absolutamente desinteressantes ,com uma espécie de feiúra que não agride,mas acua.
Calor insuportável, que faz com que nós tenhamos sono e ao mesmo tempo não conseguimos dormir; levantei-me e sentei na cama e foi nesse exato momento que ouço cada vez mais forte uma melodia conhecida aos meus ouvidos, mas não conseguia saber qual era!Me debrucei na janela e passa na minha frente um senhor aparentando seus 70 anos.Coitado,seu inglês era pavoroso,mas a melodia me deixava intrigado e era lindíssima!Ele a cantava de forma forte e orgulhosa. Sou tímido demais, mas eu senti aquele senhor tão brutalmente, como a há muito tempo não sentia a ninguém,que pulei da cama,abria as portas do quarto e da sala e fui correndo até ele
-Meu senhor, meu senhor!
-... Oi...?
-Perdão, mas essa música que senhor está cantando...
-Frank Sinatra, meu filho!
-My way!
E como num relâmpago minha mente se iluminou e juro por tudo que eu vi o nome da música num letreiro iluminado e foi como se chão onde eu estava ficasse todo estrelado, mas por uma luz mais forte que a do sol. Iniciou-se em mim um fabuloso eclipse. Não me despedi do pobre velho e voltei correndo para o meu quarto, liguei o meu amado computador e fui correndo ao You tube:Frank Sinatra my way tradução e pronto, encontrei um vídeo com um dueto incrível.Frank Sinatra e Luciano Pavarotti cantando “My way”...Dei meu primeiro grito!Coloquei o vídeo para carregar e já esperava a lentidão de sempre, mas sabem, meus caros, eu tenho mesmo que acreditar em anjos, pois aquele vídeo carregou de forma tão rápida... E começou com a voz de Sinatra e foi até a metade e depois Pavarotti e no fim suas vozes juntas. No meio disso tudo eu tiver um turbilhão de emoções tão fortes, meus senhores, mas tão fortes que esbravejei com os braços em riste e me senti inchadíssimo como um balão e chorei oceanos!Toda a melodia, a voz charmosa de Sinatra (que faz qualquer um morde os lábios e bambear as pernas) e a voz brutal e emocionada de Pavarotti (que faz qualquer um ajoelhar-se a agradecer por ter nascido no mesmo planeta que esse homem) e a aquela poesia musicada me fizeram voltar a viver deveras!
A letra por completo é de uma crueza visceral e cristalina e tão arrebatadora que deveria ser tocada sempre (eu disse SEMPRE com obrigação mesmo) em todo os aniversários e funerais.A letra fala do fim de uma etapa vendida( ou não),de um peleja travada com honra e brutalidade e ao mesmo (e por que não?) com mansidão.Ela toda nos nivela a simples condição de seres viventes e que carregam dentro de si toda sorte de paixão,não importando se boas ou más.Não importa se você até ali teve uma vida alucinada,falando e fazendo o queria ou se teve que dissimular e ser medíocre,não importa!Seja lá o que você fez, tenha certeza de foi do SEU JEITO.
De todos os versos o que me deixou mais fervoroso foi esse:
“Quando eu mordi mais que eu podia mastigar
Entretanto, quando havia dúvidas
Eu engolia e cuspia fora”
GENIAL e dogmático!
Pessoas!Estou vivo e com uma fome danada de gente. Cada pessoa me está apetitosa e vou morde-los.Preparem-se,pois não serei delicado;estou sentindo ódio de novo e amor por algumas pessoas.Como é fabuloso sentir seu corpo todo latejar e o meu está latejando por cada um de vocês!
Todos nós somos uma ferida viva e cheia de infecções, mas com o tempo se não nos coçarmos a ferida vai criando aquela casquinha e para de doer!Nós temos que nos doer. A cicatrização é morte dessa ferida... Não permita que isso ocorra!Ande meta logo esse dedo na sua ferida e coce bastante, coce muito, muito mesmo e permita que outros dedos intrusos te adentrem!
Não existe nenhuma mensagem aqui de “Ô, seja feliz e viva a vida intensamente!”. Não, nada disso.Se você tiver que ser ou se Passar por alguma coisa,eu o peço que faça DRAMATICAMENTE.É isso que eu entendi ou quis entender da letra da música!É TER TESÃO PELOS GOZOS E DORES DA VIDA!Simples assim!
Estou latejando completamente e tomara que dure muito, muito mesmo!
Obs: Estou escrevendo esse texto com uma amargura brutal no peito!Não sei ao certo o motivo, mas se isso me faz latejar então me dou por satisfeito.
[Meu Jeito]
E agora o fim está próximo Assim eu enfrento a cortina final Minha amiga, eu direi isto claramente Eu declararei meu caso do qual eu estou certo Eu vivi uma vida que está cheia Eu viajei cada e toda estrada E mais, muito mais que isto Eu fiz do meu jeito Pesares, eu tive alguns Mas novamente, muito pouco pra mencionar Eu fiz o que eu tive que fazer E vi isto através de nenhuma exceção Eu planejei cada gráfico do percurso Cada passo cuidadoso ao longo do caminho Oh, e mais, muito mais que isto Eu fiz do meu jeito Sim, havia tempos, tenho certeza que você sabe Quando eu mordi mais que eu poderia mastigar Mas alem disso quando havia dúvida Eu engolia e cuspia fora Eu enfrentei tudo e eu me mantive alto E fiz do meu jeito Eu amei, eu ri e chorei Eu tive minhas faltas, minha parte de perder, E agora que as lágrimas cessaram Eu acho isso tudo tão divertido Pensar eu fiz tudo aquilo E se posso dizer, não de um modo tímido Oh, não, não eu Eu fiz do meu jeito Para o que é um homem, o que ele tem Se não ele proprio, então ele não tem Dizer as palavras que ele verdadeiramente sente E não as palavras que ele revelaria Os registros mostram que eu recuperei o folêgo E fiz do meu jeito Os registros mostram que eu recuperei o folêgo
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Clarice por Caio
Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu
Caio Fernando Abreu .
(Do livro de cartas de Caio F.A.)
*Carta destinada a escritora Hilda Hilst
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